Nos anos 1990, a América Latina liderou a adoção de leis de cotas de gênero em nível mundial. Hoje avança na transição para a paridade. Qual o impacto dessas medidas na representação política das mulheres?
América Latina: incubadora de ações afirmativas
Depois da inovadora Lei de Cotas aprovada em 1991 na Argentina, e com o impulso das recomendações emanadas da iv Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas (Beijing, 1995),
até 2001, mais dez países da América Latina aprovaram leis de cotas (Archenti & Tula, 2008). Passada uma década de aplicação das leis de cotas, com resultados díspares quanto à obtenção da igualdade na representação política de homens e mulheres, estabeleceu-se uma nova meta: a paridade. O conceito de democracia paritária foi introduzido na normativa regional em 2007, com a aprovação do Consenso de Quito na 10a Conferência Regional da Mulher da Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas (cepal). Em 2015, foi aprovada no Parlamento Latino-Americano e Caribenho (Parlatino) o Marco Normativo para Consolidar a Democracia Paritária.Embora tanto as leis de cotas como as de paridade visem alcançar a igualdade de gênero na representação política e ambas sejam aplicadas na elaboração das listas eleitorais, conceitualmente e na prática são duas coisas diferentes (Aguirrezabal Quijera, 2021). Neste artigo, passa-se em revista o processo de adoção, primeiro, da lei de cotas e, depois, da de paridade na América Latina e se reflete sobre as diferenças entre esses dois tipos de medidas, avaliando sua eficácia para aumentar as taxas de representação política das mulheres na região.
A Plataforma de Ação Mundial para a Mulher insta os Estados-membros a: “Adotar medidas, inclusive nos sistemas eleitorais, se for caso disso, para incentivar os partidos políticos a integrarem mulheres nos cargos públicos eletivos e não eletivos, na mesma proporção e nos mesmos níveis que os homens” (art. 190b); e a “Examinar os diferentes efeitos dos sistemas eleitorais na representação política das mulheres em órgãos eleitos, e considerar, se necessário, o ajustamento ou a reforma desses sistemas” (art. 190d).
A cota de gênero é uma medida temporária que visa corrigir as desvantagens e discriminações que histórica e atualmente as mulheres sofrem em um sistema político concebido pelos homens e para os homens.
As leis de cotas
A cota de gênero baseia-se no conceito de ação afirmativa, tal como definido e validado na Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (cedaw, 1979). É uma medida temporária que visa corrigir as desvantagens e discriminações que histórica e atualmente as mulheres sofrem em um sistema político concebido pelos homens e para os homens. Funciona assegurando que um percentual mínimo de candidaturas nas listas eleitorais partidárias seja preenchido por mulheres. Sua natureza temporária advém do fato de que “essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados” (cedaw, art. 4.º, 1.º Inc.). Ou seja, conforme esclarecimento do Comitê da cedaw em 2004, em sua recomendação geral n.º 25, a temporariedade das cotas não diz respeito à delimitação de um prazo de finalização fixado a priori, mas ao fato de que deixarão de ser relevantes quando a desigualdade que se tenta corrigir desaparecer.
Em suma, a cota procura tornar efetiva a equidade política entre mulheres e homens, criando igualdade de condições no ponto de partida da disputa eleitoral, além da igualdade de oportunidades prometida pela universalização dos direitos políticos de eleger e ser eleito/a.
Efetividade da cota
Os estudos comparados sobre a aplicação das cotas apontam a importância de que as leis incluam certas condições para assegurar sua efetividade (Archenti & Tula, 2008; Franceschet, Krook & Piscopo, 2012). Por um lado, é necessário um mandato de posição, que estipula como se deve aplicar o percentual da cota. Nesse sentido, é fundamental que a cota seja aplicada ao longo das nominatas de candidaturas (tanto titulares como suplentes), em vez de ser aplicada globalmente à lista, pois isto permitiria situar todas as candidatas nas últimas posições, que geralmente não são bem-sucedidas. Por outro lado, também é importante que o descumprimento sofra sanções, a fim de que os partidos políticos assumam o compromisso real de aplicar as medidas e estas não se tornem letra morta.
Mesmo cuidando desses aspectos, os estudos que avaliam o impacto da adoção dessas leis nos países da América Latina mostraram que a efetividade das cotas é também mediada pelas próprias características dos sistemas eleitoral e partidário (Archenti & Tula, 2008, 2014; Franceschet, Krook & Piscopo, 2012). Nesse sentido, os traços mais relevantes são:
— O tamanho do distrito, ou quantas cadeiras estão em disputa em cada distrito eleitoral;
— Sistema eleitoral; por exemplo, se as cadeiras são obtidas por votação majoritária ou distribuídas segundo um critério de representação proporcional;
— No caso dos distritos plurinominais, nos quais se disputa mais de uma cadeira, o tipo de lista usado; isto é, se a lista de candidaturas é fechada e bloqueada ou aberta, o que define se o/a eleitor/a pode ou não desfazer ou alterar a ordem das candidaturas;
— O grau de disputa legislativa, ou quantos partidos ou setores com chances de conquistar uma cadeira competem na eleição.
Nesse particular, os estudos comparados mostram que as leis de cotas tendem a ser mais efetivas em sistemas eleitorais com distritos plurinominais grandes, nos quais as cadeiras são atribuídas segundo um critério de representação proporcional e a disputa legislativa é baixa, quer dizer, as cadeiras se distribuem entre um número limitado de partidos ou setores.
Feita a lei, feita a burla
Não obstante, mesmo quando essas condições são cumpridas, a experiência latino-americana com as cotas mostrou que o que foi pensado como um piso mínimo para o acesso das mulheres em muitos casos se tornou um telhado de vidro. Numerosos estudos revelaram como a persistente resistência das lideranças partidárias masculinas a compartilhar o poder levou ao desenvolvimento de uma série de práticas informais e estratagemas deliberados que lhes permitiam burlar as obrigações das leis de cotas. Tais práticas incluíam:
— A aplicação minimalista da cota (o que implica incluir a mínima quantidade de candidatas e situá-las nas posições mais baixas possíveis segundo a lei);
— O franco desacato, aproveitando-se de órgãos de fiscalização eleitoral fracos;
— O uso de candidaturas decorativas, em muitos casos, de mulheres sem carreira nem experiência política anterior, que não disputariam a liderança masculina, como as chamadas mulheres de na Argentina (Marx, Borner & Caminotti, 2007);
— Pactos de cumplicidade com candidatas que, tão logo eram eleitas, renunciavam ao cargo em favor de seus suplentes homens, como no México (Piscopo, 2011) e Uruguai (Johnson, 2015);
— A perseguição ou violência política para obrigar as mulheres eleitas a renunciarem, chegando ao assassinato em casos extremos, como aconteceu na Bolívia (Krook & Restrepo Sanin, 2016).
Diante dessas dificuldades, diversos atores procuraram readequar a legislação de cotas, em processos de reforma reiterada (Krook, 2009). Foram atores-chave nesses processos os movimentos feministas, as próprias mulheres políticas e, no caso de alguns países, como o México e a Costa Rica, a Justiça Eleitoral (Llanos & Martínez, 2016, pp. 28-29). Assim, a legislação foi sendo ajustada para eliminar qualquer subterfúgio que permitisse aos partidos não cumprirem com o espírito da lei. Ainda assim, o fato de o percentual da cota ser fixado, na maioria dos casos, em 30% e de os partidos o respeitarem no limite, de forma minimalista, significava que, mesmo com leis reformadas, dificilmente a região atingiria os 50% de representação de homens e mulheres em cargos públicos.
O avanço rumo à democracia paritária
Em face desse panorama de resistência persistente e avanços estagnados, em vários países da América Latina começou-se a reivindicar ir além da cota e fixar como horizonte a democracia paritária, que fora definido politicamente pela primeira vez na 1a Cúpula Europeia “Mulheres no Poder” (Atenas, 1992). Em termos conceituais, a paridade transcende o foco procedimental da cota, pois implica ressignificar a própria democracia como modelo de convivência social. Vai muito além de uma medida de ajuste temporário do sistema eleitoral, ainda que, assim como a cota, seja uma medida de justiça social e de reconhecimento da contribuição das mulheres em todas as esferas da vida social e humana.
A paridade, assim como a cota, é uma medida de justiça social e de reconhecimento da contribuição das mulheres em todas as esferas da vida social e humana.
A democracia paritária exige uma reconceituação do sistema representativo. Diferentemente da cota, sob o conceito da paridade as mulheres deixam de ser entendidas como uma minoria que requer direitos especiais de representação dentro de um sistema político hegemonicamente masculino. Isto é, a paridade de gênero não é um mecanismo que intervém em um sistema existente, devendo-se considerar, em vez disso, como um componente integral e incontornável da democracia consolidada e de qualidade. Assim é definida no Marco Normativo para Consolidar a Democracia Paritária aprovada pelo Parlatino:
[…]entende-se por Democracia Paritária o modelo de democracia no qual a igualdade substantiva e a paridade entre homens e mulheres são eixos estruturantes das transformações que assume um Estado responsável e inclusivo. São seus fins:a. O estabelecimento de um novo contrato social e forma de organização da sociedade pelo qual se erradique toda exclusão estrutural, em particular, das mulheres e das meninas.
b. Um novo equilíbrio social entre homens e mulheres no qual ambos assumam responsabilidades compartilhadas em todas as esferas da vida pública e privada.
Sua colocação em andamento e consolidação implica na evolução em direção a relações equitativas de gênero, assim como também outras relações para igual gozo e desfrute de direitos, como, etnia, (indígenas e afrodescendentes), lgtbi, deficiências, status socioeconômico, entre outras (artigo 5).
Em termos práticos, o Marco Normativo procura ser uma referência para os Legislativos nacionais da região na implementação de reformas institucionais e políticas que promovam e garantam a igualdade substantiva entre homens e mulheres em todas as esferas decisórias.
Aplicação da paridade
No que tange à sua aplicação, diferentemente da cota, a paridade não se baseia em um percentual arbitrário, mas é resultado automático do fato de as mulheres constituírem metade da população. Partindo desse dado inquestionável, a única distribuição legítima de cargos entre mulheres e homens é 50/50. Porém, para que possa ser aplicada na etapa de definição da oferta eleitoral, na qual nem todas as posições nas listas têm as mesmas probabilidades de êxito, a paridade também exige um mandato de posição. Assim, a paridade vertical implica a distribuição equitativa de 50/50 de candidaturas masculinas e femininas de forma alternada e sequencial ao longo das listas eleitorais.
Contudo, como se verificou no caso da Costa Rica, onde a primeira aplicação da paridade, nas eleições nacionais de 2014, resultou em uma taxa de mulheres eleitas menor à obtida na eleição anterior, quando valia a cota de 40%, a aplicação efetiva das normas paritárias também é condicionada pelos sistemas eleitoral e de partidos. Em face da persistência do fosso entre as taxas de representação masculina e feminina em alguns dos países latino-americanos que primeiro adotaram a paridade, constatou-se a necessidade de incorporar outras dimensões em sua aplicação, além do critério da paridade vertical (Llanos & Martínez, 2016; Freidenberg, 2021).
Assim, definiu-se a paridade horizontal como requisito aplicável às candidaturas apresentadas em distritos uninominais, ou às candidaturas que encabeçam listas em distritos plurinominais (também chamada paridade transversal). Essas reformas, adotadas na Costa Rica, na Bolívia, no México e no Equador, obrigam todos os partidos políticos a cumprirem globalmente a paridade de gênero em suas candidaturas. Supõe-se que esse tipo de exigência tenderia a fazer com que os partidos políticos cultivassem candidatos e candidatas igualmente viáveis em todos os distritos, o que fortaleceria sua própria competitividade.
Finalmente, há casos em que se combinam diferentes critérios para garantir não apenas a paridade na oferta eleitoral, mas também na composição final do órgão eleito. Assim, na eleição para a Convenção Constituinte no Chile, em maio de 2021, por um lado se exigia a paridade vertical nas listas de candidaturas e, além disso, a obrigatoriedade de encabeçar todas as listas com mulheres. Mas, por outro lado, aplicou-se a paridade de resultados em cada distrito e na Convenção como um todo, o que implicou substituir a pessoa eleita pela seguinte na lista do gênero oposto quando, como resultado da votação, não se alcançava a paridade.
Impacto das cotas e a paridade na América Latina
Quão efetivas têm sido as leis de cotas na região? A passagem da cota à paridade implicou um aumento da representação feminina? Para medir o impacto dessas leis, no gráfico 1 apresentam-se os dados da presença de mulheres no Congresso de catorze países latino-americanos que aprovaram leis de cotas entre 1991 e 2015, sete dos quais hoje em dia têm leis de paridade aprovadas e aplicadas. Comparando-se a taxa de representação parlamentar feminina atual com a resultante da última eleição anterior à adoção da lei de cotas, é evidente que essas medidas produziram um aumento significativo da presença feminina. Também fica evidente que a paridade em geral tem um impacto maior que a cota. As exceções mais visíveis são a Honduras e Panamá, países onde a proporção de parlamentares mulheres não chega nem sequer a 30%, apesar de contarem com leis de paridade. Nesses casos, a explicação está no fato de a paridade ser aplicável apenas nas eleições primárias (Panamá) ou os partidos terem válvulas de escape (Freidenberg, 2021, p. 55) que permitem o descumprimento na prática.
Percentual de mulheres na Câmara baixa ou única do Congresso

Nota: Entre colchetes indica-se a data de aprovação das primeiras leis de cotas
Fonte: elaboração própria, com dados da Classificação Mundial de Mulheres no Parlamento da União Interparlamentar (uip).
Disponível em ‹https://data.ipu.org/women-ranking?month=7&year=2022›.
Esses dados demonstram claramente a maior efetividade da paridade como mecanismo para acabar com o fosso entre a representação política de mulheres e homens. Não obstante, a constatação de que não se atinge a paridade numérica em todos os congressos dos países onde vigem leis de paridade alerta para o fato de que, assim como ocorre com a cota, a efetividade da paridade é mediada pelas características do sistema eleitoral no qual se aplica e pelo grau de compromisso real de todos os atores envolvidos em sua implementação.
Além disso, a experiência desses países aponta que, para alcançar a igualdade substantiva de gênero na esfera pública, é importante a incidência articulada de diferentes atores: as próprias mulheres políticas, organizadas em coordenações intra e interpartidarias; os órgãos de controle eleitoral comprometidos com a promoção da igualdade de gênero; partidos políticos e dirigentes aliados que mostram compromisso real com a paridade de gênero nos espaços de decisão política; e a vigilância e denúncia, pelo movimento social feminista, dos casos de descumprimento.
Atualmente, as pesquisas de opinião pública mostram que na América Latina as taxas de confiança nos partidos políticos e parlamentos encontram-se em níveis muito baixos e o valor da própria democracia como sistema de convivência e governança é fortemente questionado em alguns países da região. Nesse cenário, a adoção de leis de paridade representa uma contribuição fundamental na construção de uma nova forma de política, mais inclusiva e diversa, que tem o potencial de ressignificar e fortalecer as instituições e práticas da democracia representativa.
Referências
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Freidenberg, F. (2021). La representación política de las mujeres en América Latina: estrategias institucionales, actores críticos y reformas pendientes. In E. Rodríguez Pinzón (ed.), Perspectivas de América Latina. Hacia un nuevo contrato social tras la covid (pp. 47-68). Madri: Pablo Iglesias.
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