O superciclo eleitoral latino-americano 2021–2024

O superciclo eleitoral latino-americano 2021–2024

El artículo analiza las características del superciclo 2021-2024 y el contexto regional en que este tiene lugar, junto con las principales tendencias de las elecciones presidenciales del período 2019-2022. Se destacan el voto castigo a los oficialismos, los ciclos políticos más cortos, la hiperpolarización tóxica, la amenaza de populismo, el uso del balotaje, la alta fragmentación y la contaminación informativa.

Por: Daniel Zovatto21 Mar, 2023
Lectura: 19 min.
O superciclo eleitoral latino-americano 2021–2024
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Artículo original en español. Traducción realizada por inteligencia artificial.

Este artigo analisa as características do superciclo 2021–2024 e o contexto regional em que ele ocorre, bem como as principais tendências das eleições presidenciais do período 2019–2022. Destacam-se o voto de castigo aos governos em exercício, os ciclos políticos mais curtos, a hiperpolarização tóxica, o risco de populismo, a recorrência do segundo turno, a alta fragmentação e a poluição informacional.

O superciclo eleitoral latino-americano 2021–2024

Com o início da terceira década do século xxi, começou um novo superciclo eleitoral na América Latina. Todos os países da região, exceto a Bolívia (cujas eleições presidenciais foram celebradas em 2020), renovarão a Presidência e o Congresso pelo voto direto. Essas eleições têm lugar em um contexto — global e regional — de tempo carregado, assolado por várias crises: a pandemia de Covid-19 — que ainda não terminou —, a invasão da Ucrânia pela Rússia e seus impactos negativos, a desaceleração econômica com risco de recessão, o aumento do custo de vida, da energia, da inflação, dos juros, e a ameaça de uma crise alimentar, entre outras.

Essas múltiplas crises aprofundaram as desigualdades e a pobreza, aumentado a desconfiança da cidadania nas elites e agudizando o mal-estar social nas ruas (protestos) e nas urnas (voto de castigo contra os governos em exercício). Tudo isso gerou uma agenda de novos temas — proteção do meio ambiente, digitalização, equidade de gênero, inclusão, dignidade e luta contra a desigualdade, entre outros —, a necessidade de lideranças políticas renovadas e empáticas e a urgência de renegociar os contratos sociais. Diante dessas mudanças culturais e dessa nova agenda de demandas de uma sociedade que mudou profundamente nos últimos anos, sobretudo nos estratos mais jovens, as elites tradicionais se viram ultrapassadas, pois não souberam interpretá-las e se reposicionar.

Por razões de espaço, o presente artigo se concentrará na análise do superciclo 2021–2024 e das tendências eleitorais que emergem do período 2019–2022. Na tabela 1 observa-se a intensa maratona eleitoral que a região terá durante o mencionado quadriênio.

Tabela i. Calendário de eleições presidenciais do superciclo 2021–2024

O que é o superciclo eleitoral e em que contexto ele ocorre?

O superciclo eleitoral 2021–2024 é o conjunto de pleitos compreendidos nesse quadriênio, no qual dezessete países latino-americanos (com exceção da Bolívia, pelos motivos mencionados acima) realizarão eleições presidenciais e legislativas, subnacionais e municipais para a renovação ou recondução das autoridades políticas desses países, bem como seus efeitos na reconfiguração do mapa político regional.

O superciclo atual tem lugar em um dos momentos mais complexos desde a redemocratização da região (1978), marcado pelo impacto socioeconômico da pandemia, pela erosão da confiança na democracia e pela deterioração da qualidade das instituições. A seguir apresentamos um resumo, em perspectiva regional, de três contextos das eleições nesse período.

Contexto econômico: reativação fraca, inflação alta e tensões sociais

A região vai completando mais uma década perdida (2014–2023). Em sua projeção mais recente, de julho de 2022, o fmi calcula que o crescimento econômico da América Latina neste ano rondará os 3% e cairá a 2% em 2023, tornando-se assim a região com pior desempenho em todo o planeta. Entre os fatores que contribuem de forma combinada para o anêmico crescimento econômico destacam-se as restritivas condições macroeconômicas globais — inflação, aumento das taxas de juros e retração monetária, aumento do preço das matérias-primas, bem como dos medicamentos e combustíveis — e as demandas internas para sustentar níveis de consumo e bem-estar. Em matéria de inflação, o fmi prevê que a América Latina experimentará em 2022 e 2023 a taxa mais alta em 25 anos, projetando médias de 12,1% e 8,7%, respectivamente.

Esses acentuados desequilíbrios econômicos vêm tendo um forte impacto sobre os indicadores sociais. Em 2021, a pobreza na região chegou a 32,1%, e a extrema pobreza, a 13,8%, que equivale a 201 e 86 milhões de pessoas, respectivamente (pnud, 2021). Isso significa que os avanços em matéria de redução da pobreza conquistados na década anterior foram anulados de uma tacada, e nos encontramos nos mesmos níveis gerais de 2008, porém com uma taxa de pobreza extrema que significa um recuo de trinta anos, com percentuais equivalentes aos de 1990.

Contexto institucional: erosão da democracia e debilitação do Estado de direito

Em matéria institucional, a democracia encontra-se em um franco processo de erosão há pouco mais de uma década. A pandemia acelerou a paulatina deterioração político-institucional que já se observava anteriormente. Além disso, a crise sanitária foi usada por vários líderes populistas como pretexto para decretar poderes emergenciais, a fim de concentrar poder de forma ilegítima e assim avançar na supressão ilegal de direitos e liberdades fundamentais da população (idea Internacional, 2021). A democracia enfrenta, em nível global e regional, um novo tipo de autoritarismo. Atualmente, as democracias já não morrem em consequência dos tradicionais golpes de Estado — embora ainda ocorram em alguns países —, e sim pela deterioração gradual e permanente de seus pilares, levada a cabo por governantes eleitos, no interior do próprio regime.

Atualmente, as democracias já não morrem em consequência dos tradicionais golpes de Estado

[…]
, e sim pela deterioração gradual e permanente de seus pilares.

Segundo o relatório da Freedom House (2022), enquanto em 2005 46% da população mundial vivia em países livres, hoje esse percentual é de apenas 20,6%. De acordo com o levantamento de The Economist Intelligence Unit’s, 44% dos países pioraram sua qualificação democrática média em 2021 em relação a 2020.

O triênio mais recente (2019–2021) foi ainda mais difícil para as democracias latino-americanas. Segundo The Economist, a América Latina é a região do mundo que sofreu a maior queda anual no índice de democracia em 2021, passando de 6,09 a 5,83 sobre 10

 , piora que ocorre pelo sexto ano consecutivo.

Cultura política: desconfiança generalizada nas elites e instituições democráticas

Em nossa região há duas instituições que medem o pulso da opinião pública com suas sondagens: o Barômetro das Américas (BA) e o Latinobarômetro (LB). Ambas apontam que o apoio à democracia vem caindo nos últimos anos, passando de 69% em 2008 a 62% em 2021 (ba) e de 63% em 2010 a 49% em 2020 (lb). O maior ceticismo recai na satisfação com a democracia, situada em 43% em 2021, contra 59% em 2010 (ba). Do mesmo modo, 73% dos pesquisados em 2020 afirmavam que “os grupos poderosos governam em seu próprio benefício” (lb).

Há outros três dados ainda mais preocupantes. O primeiro é que, enquanto em 1995 apenas 16% dos latino-americanos afirmavam que lhes era indiferente viver ou não em democracia, em 2021 esse percentual chegou a 27% (lb, 2021). O segundo, de acordo com a mesma fonte, é que 51% da população (eram 44% em 2002) declara não se importar se o governo não é democrático, contanto que resolva seus problemas. E o terceiro, que a crise de credibilidade está afetando não apenas as instituições democráticas tradicionais, mas também o regime em geral e a confiança interpessoal. A confiança nos partidos políticos segue em seu patamar mais baixo, 13%; a confiança no Congresso está em 20%; no Poder Judiciário, 25%; no Executivo, atingiu o ponto mais baixo em 2020, 32%; e a confiança nas instituições eleitorais também vem caindo, situada em apenas 31% (todos dados do lb).

A confiança nos partidos políticos segue em seu patamar mais baixo, 13%; a confiança no Congresso está em 20%; no Poder Judiciário, 25%; no Executivo, atingiu o ponto mais baixo em 2020, 32%.

A esse complexo e desafiador cenário regional latino-americano devemos ainda acrescentar outros fatores agravantes, como a maldita corrupção, a debilidade do Estado de direito, o aumento das economias ilegais e do crime organizado, os altos níveis de violência e homicídios e a nova crise migratória, entre outros; fatores todos que têm forte influência nos processos eleitorais do atual superciclo.

Tendências político-eleitorais na América Latina em 2019–2022

A seguinte análise das principais tendências político-eleitorais abrange os pleitos presidenciais realizados na região entre 2019 e 2022, período que inclui o fim de um superciclo, a pandemia de 2020 e os dois primeiros anos do atual superciclo. Esse quadriênio compreende, ainda, seis eleições pré-pandêmicas, em El Salvador, Panamá, Guatemala, Bolívia, Argentina e Uruguai.

As presidenciais bolivianas de 2019 foram anuladas devido a graves irregularidades, sendo repetidas em 2020, dentro da normalidade. Nesse ano, em pleno pico da crise sanitária, também foram celebradas as eleições presidenciais na República Dominicana.

Em 2021 teve início o superciclo atual, com uma intensa agenda de cinco eleições presidenciais: Equador, Peru, Chile e Honduras, mais a farsa eleitoral nicaraguense perpetrada pela ditadura Ortega-Murillo.

Em 2022 há três eleições presidenciais no calendário. As duas primeiras, na Costa Rica e na Colômbia, foram celebradas no primeiro semestre; a terceira, no Brasil, ocorrerá

  em outubro.

A seguir, analisamos as sete principais tendências político-eleitorais da região correspondentes ao quadriênio 2019–2022.

Tabela 2

*As cores indicam o sinal ideológico dos presidentes: vermelho (esquerda), amarelo (centro) e azul (direita).
** Eleição sem as mínimas condições de integridade (farsa eleitoral).
Fonte: Elaboração do autor, baseada em resultados eleitorais.

1. Voto de castigo aos governos em exercício

Os governos em exercício foram repetidamente castigados nas urnas. De 2019 até o presente (agosto de 2022), foram celebradas catorze eleições presidenciais na América Latina. Excluindo a farsa eleitoral nicaraguense, em todas houve um voto de castigo à situação, ou seja, o partido ou candidato do partido governista foi derrotado nas urnas (tabela 2).

A reeleição presidencial tornou-se uma tarefa difícil para os presidentes latino-americanos, e a alternância redundou no encurtamento dos ciclos políticos. Entre 2019 e 2022, nenhum presidente que tentou a reeleição consecutiva obteve sucesso (Mauricio Macri, na Argentina, e Evo Morales, na Bolívia, ambos em 2019, não foram reeleitos). Por outro lado, o voto de castigo aos governos em exercício acarretou maior alternância e inaugurou um novo ciclo político.

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está em curso na América do Sul uma virada do sinal ideológico com o retorno da esquerda ao poder, ainda que com outros matizes.

De fato, está em curso na América do Sul uma virada do sinal ideológico com o retorno da esquerda ao poder, ainda que com outros matizes. Quatro das cinco eleições presidenciais sul-americanas mais recentes (Bolívia, Equador, Peru, Chile e Colômbia) foram ganhas pela esquerda, e apenas no Equador venceu uma força de centro-direita. Somente em quatro países sul-americanos (Brasil, Equador, Paraguai e Uruguai) restam governos de direita, enquanto seis (Argentina, Bolívia, Chile, Peru, Colômbia e Venezuela) são de esquerda, embora haja grandes diferenças entre eles. Uma vitória do ex-presidente Lula no Brasil — que vem liderando as pesquisas —, ampliaria esse retorno de governos progressistas.

Se a vitória de Lula se confirmar, teremos um cenário regional inédito: as seis principais economias da região (Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile e Peru) serão governadas por líderes de esquerda.

3. Hiperpolarização tóxica

Todos os principais estudos sobre qualidade da democracia registram sua preocupação com uma perigosa tendência à hiperpolarização. No último quinquênio observa-se um enfraquecimento do centro político como campo ideológico e o confronto em segundo turno de candidatos representantes dos extremos ideológicos. Esse fenômeno costuma vir acompanhado de uma hiperfragmentação que abre espaço para que candidatos marginais se destaquem com suas mensagens e consigam passar para o segundo turno, como ocorreu nas eleições peruanas de 2021, cuja rodada final foi disputada entre os dois candidatos que representavam os extremos, entre dezoito alternativas.

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… observa-se um enfraquecimento do centro político como campo ideológico e o confronto em segundo turno de candidatos representantes dos extremos ideológicos.

A hiperpolarização tóxica representa uma grave ameaça para a qualidade da democracia, por diversas razões; sobretudo porque os candidatos extremistas tendem a promover medidas antidemocráticas e a questionar as instituições e as regras do processo eleitoral e do sistema democrático. A polarização exacerbada também pode fomentar níveis perigosos de violência política, verbal ou física. Nesses contextos hiperpolarizados, os candidatos derrotados tendem a não aceitar os resultados, denunciar fraudes inexistentes e promover campanhas de desrespeito e ataque às instituições eleitorais.

O fenômeno dos ataques cada vez mais fortes, ilegais e infundados aos órgãos eleitorais e seus integrantes na região, a fim de deslegitimá-los e debilitá-los, seja a partir do Executivo ou dos partidos de oposição, é uma perigosa tendência que vem ganhando força em boa parte dos países, entre os quais se destacam Brasil, México e Peru.

4. Ameaça de populismo

Com frequência crescente, observa-se a irrupção de candidatos populistas que se caracterizam por dividir a sociedade em campos de batalha: nós contra eles. Esse “eles” costuma ser descrito como uma elite, casta ou classe social à qual se atribuem todos os males do país (antiestablishment), caricaturando os oponentes e apostando na polarização extrema.

Quem apela ao populismo corrói as bases institucionais e organizacionais da representação e privilegia a relação direta com os apoiadores, com laivos messiânicos, personalistas e um potencial viés autoritário.

Com base nessa premissa, a política é interpretada em chave de conflito permanente, confrontando modos irreconciliáveis de entender o mundo. Quem apela ao populismo corrói as bases institucionais e organizacionais da representação e privilegia a relação direta com os apoiadores, com laivos messiânicos, personalistas e um potencial viés autoritário. O populismo pode adotar qualquer ideologia política: há casos de populismo tanto de direita como de esquerda.

5. Frequência crescente do segundo turno e reversão de resultados

Ultimamente, o segundo turno vem ocorrendo na maioria dos países cuja legislação eleitoral prevê sua realização, e a par disso também tem aumentado a frequência em que o resultado do primeiro tuno é revertido. Na América Latina, são doze os países que aplicam o segundo turno: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Peru, República Dominicana e Uruguai, ainda que com diferenças significativas. Nas últimas eleições presidenciais celebradas em cada um desses países, oito foram a segundo turno para definir o presidente: Brasil (2018), Chile (2021), Colômbia (2022), Costa Rica (2022), Equador (2021), Guatemala (2019), Peru (2021) e Uruguai (2019). As exceções foram: Argentina e El Salvador, em 2019, e Bolívia e República Dominicana, em 2020.

Desde o início da terceira onda democrática na região, no final da década de 1970, huve segundo turno em 58 eleições. Em 39 delas (67%), o vencedor do primeiro turno foi confirmado, e em 19 casos (33%) houve uma virada. Nos últimos sete segundos turnos realizados na região (Guatemala, 2019; Uruguai, 2019; Equador, 2021; Peru, 2021; Chile, 2021; Costa Rica e Colômbia, 2022), em cinco deles (83%) houve virada — a exceção foram Peru (2021) e Colômbia (2022).

6. Fragmentação e presidencialismo de coalizão

A pouca confiança da população nos partidos e a crescente personalização da política aprofundaram a crise na maioria dos sistemas partidários latino-americanos. Consequentemente, o número de partidos e de candidatos à presidência vem crescendo muito. Por exemplo, nas recentes eleições presidenciais da Costa Rica (2022), apresentaram-se 25 candidatos, 14 dos quais obtiveram menos de 1% dos votos. Algo semelhante ocorreu no Equador, em 2021, e no Peru, em 2021, países que registraram 16 e 18 candidaturas presidenciais, respectivamente.

Os congressos também se caracterizam por um maior nível de fragmentação, e os presidentes eleitos por partidos minoritários têm de construir amplas coalizões para governar. O resultado dessa situação é preocupante: os mandatários que não contam com maioria própria tendem a formar coalizões voláteis, com pouca coesão programática, o que acaba provocando frequentes divisões na base do governo, fortes choques entre poderes e instabilidade ministerial e governamental.

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os mandatários que não têm maioria própria tendem a formar coalizões voláteis, com pouca coesão programática, o que acaba produzindo frequentes divisões na base do governo.

Os dois exemplos atuais mais claros — mas não os únicos — são Lasso, no Equador, e Castillo, no Peru. Neste país já houve duas tentativas de destituição do presidente Castillo em menos de um ano de mandato.

7. Crescente poluição informacional nas campanhas

As fake news, as campanhas de desinformação e a poluição informacional estão em alta. Essas táticas são utilizadas pelos candidatos, mas também pelos governos para interferir nas eleições de outros países.

As redes sociais vêm ganhando cada vez mais importância e presença política. Seus efeitos nas eleições e na democracia são tanto positivos quanto negativos. Um número cada vez maior de pessoas recorre às redes sociais para se informar sobre política e sobre as propostas dos candidatos. Além disso, seu uso ajuda a horizontalizar a comunicação política e fazer dela uma via de mão dupla.

Mas as redes sociais também acarretam riscos graves e crescentes quando utilizadas de forma inadequada, para desinformar, dividir e disseminar o ódio. Com efeito, quando as mensagens transmitidas nas redes sociais são majoritariamente negativas — com emoções de raiva, medo e desconfiança —, exacerbam a polarização e produzem o efeito bolha (diálogo entre iguais). Isso emperra o diálogo político construtivo, e seus efeitos sobre os processos eleitorais e a democracia são muito adversos.

Conclusões

A democracia na América Latina vem dando sinais de resiliência e de deterioração. Os próximos anos se anunciam complexos e desafiadores. Devemos nos preparar para enfrentar tempos difíceis.

A América Latina foi a região mais prejudicada pela pandemia de Covid-19, que deixou uma herança envenenada em matéria de desenvolvimento humano. Em termos econômicos, estamos às portas de mais uma década perdida. A desconfiança generalizada da população nas elites, nas instituições e no sistema político em seu conjunto vem fragilizando a democracia e permeando as relações interpessoais e as organizações sociais.

A democracia sofre também o assédio de líderes populistas e autoritários que, ao chegar ao poder pela via eleitoral, a corroem por dentro. Consequentemente, a crise político-institucional e de governança que assola nossas democracias é uma das mais desafiadoras desde o início da terceira onda democrática, já faz 43 anos (Sahd et al., 2022). Daí a importância de fortalecer não apenas a legitimidade de origem, mas também a legitimidade de exercício, como prescreve a Carta Democrática Interamericana.

[…]
a crise político-institucional e de governança que assola nossas democracias é uma das mais desafiadoras desde o início da terceira onda democrática, já faz 43 anos.

Para tanto, a região deve priorizar três frentes. Primeiro, fomentar e fortalecer a resiliência eleitoral para garantir a legitimidade de origem, como durante a pandemia, quando os países latino-americanos, em face dos imensos desafios daquela conjuntura, foram capazes de continuar realizando eleições com altos padrões de biossegurança e integridade. Para tanto, é fundamental blindar os órgãos eleitorais contra os crescentes ataques provindos do Executivo e dos partidos políticos, tanto da situação quanto da oposição.

Segundo, recuperar a confiança nas elites e nas instituições, abrindo novos canais de escuta, diálogo e participação cidadã. É preciso reimaginar o papel do cidadão, acrescentando à sua condição de eleitor outras dimensões de caráter participativo e deliberativo que lhe permitam ter um protagonismo maior e mais frequente nos processos de tomada de decisões e de elaboração de políticas públicas.

E, terceiro, acompanhar a democracia de um Estado moderno, robusto e estratégico, instrumento de governança eficaz para estar em condições de oferecer resultados concretos e oportunos aos problemas reais das pessoas. Como advertíamos em 2021, com Sergio Bitar:

A governabilidade democrática é condição essencial para a superação da crise e a realização das reformas necessárias na América Latina. São necessários acordos amplos e majoritários para evitar a polarização política e a consequente paralisação da ação pública. A hiperpolarização tóxica acarreta o risco de resvalar no autoritarismo ou no populismo, seja por uma demanda de ordem a qualquer preço ou pela crença em soluções fáceis para problemas complexos. Por isso é necessário testar novos mecanismos, diálogos e a participação permanente em todos os níveis, que garantam a inclusão de uma cidadania empoderada (p. 5).

É preciso atualizar e fortalecer os mecanismos de proteção da democracia em nível regional, para que complementem e apoiem os já existentes em nível nacional. A prioridade deve se concentrar na atualização e fortalecimento da Carta Democrática Interamericana e em buscar um novo consenso regional, de larga base política, em prol da defesa da democracia, dos processos eleitorais íntegros, do respeito aos direitos humanos e à liberdade de expressão e à plena vigência do Estado de direito.

Essa é a agenda que a América Latina deve pôr em prática, com urgência e bússola na mão, voltada a repensar a democracia representativa, revalorizar a política, acelerar a inovação político-institucional, fortalecer os mecanismos de participação e deliberação cidadã e incorporar à política as novas tecnologias digitais de forma inteligente, tudo isso com o objetivo de recuperar a confiança da cidadania na política, em suas instituições e seus líderes e, ao mesmo tempo, fortalecer a governança das sociedades complexas do século xxi.

Em suma, não há tempo a perder. Os mandatários devem aprender a governar em contextos de alta complexidade, incerteza e volatilidade, a gerar resultados rapidamente para responder às altas expectativas e novas demandas de uma cidadania cada vez mais empoderada e exigente e recuperar a confiança perdida. Caso contrário, como vem sendo observado em vários países da região, a frustração popular pode dar lugar a uma nova onda de protestos sociais, aumentando o risco de instabilidade e deterioração política, as crises de governabilidade e, pior ainda, de retrocessos democráticos. E para tanto, como bem aconselhava Albert O. Hirschman, hoje mais do que nunca, é preciso centrar foco no possível mais que no provável.

Referências

Bitar, S., & Zovatto, D. (2021, 9 de fevereiro). América Latina: los cambios postpandemia. idea Internacional. https://www.idea.int/sites/default/files/news/zovattocovid/20200210-America-Latina-Postpandemia.pdf.

Corporación Latinobarómetro. (2021). Informe Latinobarómetro 2021. Santiago do Chile.

Freedom House (2022, fev.). Freedom in the World 2022. The Global Expansion of Authoritarian Rule.

Fundo Monetário Internacional (fmi). (2022, julho). Actualización de las perspectivas de la economía mundial: Un panorama sombrío y más incierto.

idea Internacional. (2021). El estado de la democracia en las Américas 2021: Democracia en tiempos de crisis. Estocolmo: idea Internacional.

idea Internacional. (2021). Global Monitor of covid-19s Impact on Democracy and Human Rights

[Monitor global del impacto de la covid-19 sobre la democracia y los derechos humanos]
. https://www.idea.int/gsodindices/#/indices/world-map.

Lupu, N., Rodríguez, M., & Zechmeister, E. (eds.). (2021). Pulse of Democracy. Nashville: lapop.

Sahd, J., Zovatto, D., Rojas, D., & Fernández, M. P. (eds.). (2022). Riesgo Político América Latina 2022. Santiago do Chile: Centro de Estudios Internacionales, Universidad Católica de Chile.

The Economist Intelligence Unit. (2022). Democracy Index 2021: The China Challenge. Londres.

Daniel Zovatto

Daniel Zovatto

Ex director regional de IDEA Internacional para América Latina y el Caribe. Doctor en gobierno y administración pública por la Universidad Complutense de Madrid y el Instituto Universitario de Investigación Ortega y Gasset. Doctor en Derecho Internacional por la Universidad Complutense de Madrid.

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