Dizer que a democracia está em recessão não é uma sentença alarmista. Constitui um diagnóstico evidente. Às debilidades próprias dos regimes democráticos, devemos somar a influência de fatores exógenos. O autoritarismo global que opera pela via econômica e por meio do soft e do sharp power, junto com as plataformas midiáticas, acadêmicas e intelectuais da região, busca gerar simpatia por democracias diferentes.
Contudo, a democracia latino-americana também está encurralada pelo mau desempenho da classe dirigente e das instituições, que não conseguiram levar adiante as tarefas pendentes para recuperar seu peso e enfrentar os desafios do futuro.
Tarefas pendentes
A institucionalidade democrática dos países latino-americanos e as instâncias de coordenação internacional têm temas ainda não incluídos em suas agendas de discussão. O contexto é adverso, diante da crise econômica pós-pandêmica e a guerra entre uma potência autoritária (Rússia) e um país que busca refúgio no Ocidente (Ucrânia). Esse cenário, no entanto, não deveria diminuir a importância da necessidade de reformas políticas e de uma maior defesa dos ideais democráticos diante desses desafios.
A democracia não pode ser dada como certa. Não existe por inércia. A democracia é uma construção constante. Protegê-la requer observar, refletir e atuar. A economia não é o único indicador que deve ser considerado, e não somente com segurança se atinge estabilidade social. Embora essas duas variáveis expliquem boa parte das crises sociais que atravessadas pela região, outros temas também requerem conversação.
Este artigo enfoca três temas sensíveis em matéria de risco político que todo governante latino-americano deveria ter sobre a mesa: 1) confiança no sistema democrático; 2) emergência ambiental; e 3) migrações intrarregionais.
Para melhorar nossa perspectiva, recorremos a três relatórios regionais relevantes: Latinobarómetro (2021), El apoyo ciudadano a la democracia en América Latina, de Lapop e Diálogo Político (2022), e Riesgo político en América Latina, da Universidad Católica de Chile (2022).
1. Confiança na democracia
A principal ameaça à democracia e à recuperação da confiança no sistema político é a ascensão de autocracias. Na atualidade, trata-se de novos modelos de autocracia, que configuram um sistema sob medida, preservando de forma enganosa as formas essenciais da democracia (eleições periódicas), enquanto um único setor controla todos os poderes e ataca as liberdades.
Hoje em dia, são comuns os casos de deterioração democrática nos quais se evidencia que, uma vez no poder, há governantes que praticam ações para erodir a divisão de poderes e o equilíbrio institucional. Essa situação foi amplamente abordada por Moisés Naím no seu livro mais recente, A revanche dos poderosos (Debate, 2022). Naím fala dos autocratas 3P, isto é, que utilizam o populismo, a polarização e a pós-verdade.
Infelizmente, como se explica no relatório Risco político na América Latina (2022), “os mecanismos regionais criados para proteger a democracia, como a Carta Democrática Interamericana, não estão atualizados para enfrentar essas ameaças. Por essa razão, requerem urgentes precisões e modernização para aumentar a eficiência em seu objetivo”. Eis aqui uma primeira tarefa que urge revisar: o alcance e efeito dos acordos internacionais em defesa da democracia.
No livro Como as democracias morrem (Debate, 2018), Steven Levitsky e Daniel Ziblatt enfatizam esse tipo de líderes autoritários que avançam contra as instituições de dentro delas. Com frequência, não necessitam dar golpes de Estados no sentido clássico. Atingem, no entanto, o mesmo resultado: degradam as instituições e anulam a oposição.
Para piorar o quadro, um velho inimigo da democracia está ganhando mais espaço: o fantasma dos golpes militares. Na região, avançou a simpatia pela possibilidade de convalidar um golpe militar se esse garantisse que tudo continuaria igual.
De acordo com o Latinobarómetro (2021), 51% dos cidadãos latinos não se importariam que um governo não democrático chegasse ao poder se resolvesse os problemas. Em 2022, esse porcentual era de 44%.

2. Emergência ambiental
A mudança climática, a escassez de água e a poluição são temas ausentes na agenda de discussão política latino-americana. Não sobressaem entre os principais assuntos sobre os quais conversam os governantes nas cúpulas regionais nem encabeçam as agendas bilaterais.
Países como México, Chile e Nicarágua já consumiram mais de 60% de suas reservas de água. Esse dado, entre outros, é mais ignorado que conhecido. Tampouco tem prioridade o debate sobre a ausência de controle de práticas ilícitas amplamente disseminadas no território da região.
Por exemplo, a mineração ilegal nos países andinos, a destruição da floresta virgem na Venezuela, o desmatamento, a queima e a pecuária extensiva no Amazonas brasileiro, na Argentina ou Paraguai, os mares de plástico na América Central ou as montanhas de resíduos têxteis no deserto do Atacama no Chile.
Tudo isso também aumenta o risco político. Por quê? De acordo com o relatório Risco político na América Latina, a falta de políticas efetivas e acordos regionais que organizem uma governança decidida em torno ao tema incrementa o risco de transitar a cenários de maior escassez, principalmente de bens públicos, como o acesso à água, um maior impacto dos desastres naturais e, finalmente, agravar a vulnerabilidade dos países diante de seus efeitos”.
A percepção cidadã quanto ao cuidado do meio ambiente na América Latina se reduziu drasticamente. Os dados do Latinobarómetro mostram que, em 2015, 49% dos latinos consideravam garantida a proteção do meio ambiente; já em 2020, essa cifra caiu para 38%.

3. Migrações internas
A explosão da migração interna na América Latina, cujo máximo expoente desde 2015 é o êxodo venezuelano, exige repensar a migração intrarregional como fenômeno e as normativas para regularizar a circulação e as residências dos cidadãos migrantes em geral. A pandemia gerou uma contenção do fluxo migratório entre os diferentes países. No entanto, tanto os caminhos e passos irregulares quanto as solicitações de refúgio e asilo seguiram seu curso.
À medida que as políticas de flexibilização permitem a reabertura de fronteiras, os fluxos migratórios voltam a seu tamanho pré-pandemia. A falta de coordenação intrarregional, a escassez de recursos para abordar o tema e a debilidade dos Estados para organizar o movimento migratório são uma falência tem aumentado, nos últimos anos, o risco político dessa questão.
As grandes mobilizações de setembro de 2021 contra os migrantes venezuelanos em Iquique, no norte do Chile, são similares às que se registraram com frequência na Colômbia, Peru e Equador.
Essa alta maré de xenofobia é uma expressão da tensão social gerada pelos inesperados fluxos migratórios que não parecem cessar no curto prazo. Essa questão requer um posicionamento hierárquico na agenda intergovernamental com vistas a gerar mecanismos combinados que permitam articular soluções aos movimentos migratórios atuais e futuros.
Alguns elementos que agregam complexidade ao tema são: o movimento migratório na fronteira sul dos Estados Unidos com México, a nova onda de migrantes cubanos que fogem da crise na ilha e os deslocados pela violência na América Central. Embora esses temas sejam notórios na imprensa, não ocupam o topo das agendas dos encontros multilaterais na região.
Na contramão dessa carência, um estudo feito por de Lapop Lab (2021), que entrevistou 3083 pessoas no Brasil, Peru, Panamá, Equador, Colômbia e Chile, joga luz sobre a consciência cidadã de apoio aos migrantes: “56,6 dos entrevistados mostraram algum nível de concordância (respondendo ‘um pouco’ ou ‘muito de acordo’) e apenas 31,3% mostraram algum nível de discordância”. Segundo o relatório, o “número de entrevistados

Mais ação, mais consciência
A opinião pública reflete a perda de confiança na democracia, enquanto, ao mesmo tempo, crescem os autoritarismos. Esse fenômeno é tendência em escala global. A conjuntura que vivemos agrega dificuldades adicionais que devem ser abordadas pelos governos democráticos.
A mudança climática traz consigo catástrofes e dificuldades que afetam a população de forma desigual. Torna ainda mais precária a vida de setores já vulneráveis, como os camponeses, indígenas ou pescadores.
A isso se soma o fenômeno dos grandes fluxos de migração intrarregional, que carece de regulações claras e acordos que permitam dar garantias e salvaguardar direitos básicos dos migrantes.
As três questões descritas neste artigo exigem seu lugar na agenda política dos países da região e em seus espaços de coordenação internacional. A garantia mais fiável da democracia é sua constante proteção. Por isso, a elite dirigente não deveria negligenciar essas chamadas de atenção
Tradução para o português de Livia Prado, escritório da KAS em Montevidéu.