O fantasma do autoritarismo eleitoral

O fantasma do autoritarismo eleitoral

Los riesgos autoritarios que se ciernen sobre el planeta, en especial, sobre Latinoamérica, conducen a una reflexión que sugiere senderos prácticos para salvar la democracia constitucional.

Por: Paola Bautista de Alemán21 Mar, 2023
Lectura: 14 min.
O fantasma do autoritarismo eleitoral
Compartir
Artículo original en español. Traducción realizada por inteligencia artificial.

Os riscos autoritários que pairam sobre o planeta, especialmente sobre a América Latina, suscitam reflexões que sugerem caminhos práticos para salvar a democracia constitucional.

A crise global da democracia que atinge a América Latina advém de causas políticas, sociais, culturais e antropológicas. O espírito democrático da cidadania debilitou-se, gerando uma circunstância cultural em que os regimes autoritários são socialmente tolerados e se aproveitam das eleições para chegar ao poder e posteriormente destruir a democracia. É urgente compreender as características que configuram o autoritarismo eleitoral de nossos dias para revertê-lo em suas raízes culturais e antropológicas e conseguir que a luta por resgatar e manter a democracia seja uma batalha de toda a cidadania e não um mero assunto das elites sociais.

O fantasma do autoritarismo e o Homo democraticus

Ninguém ignora que a democracia sofre um retrocesso universal. Parafraseando a expressão de Marx e Engels n’O manifesto comunista, um fantasma ronda o mundo: o fantasma do autoritarismo. A ciência política vem apontando o fenômeno de forma reiterada e consistente há, pelo menos, uma década. Em todas as latitudes existem causas políticas, sociais, econômicas, culturais e até antropológicas a configurar ambientes em que é difícil manter consolidada a democracia. Já vão longe os anos imediatos à queda do Muro de Berlim, quando se imaginava que a democracia constitucional tinha se estabelecido para sempre como sistema político no marco do fim da história e da morte das ideologias (Fukuyama, 1992).

Embora haja farta literatura científica que descreve a situação enunciada no parágrafo acima, neste artigo convém elencar algumas ideias que servirão de contexto para o conteúdo que desenvolverei posteriormente.

A ideia central, da qual derivarão as seguintes, tem caráter antropológico (Bautista de Alemán, 2021b). Embora seja difícil estabelecer o fenômeno quantitativamente, observa-se um esvaziamento universal do conceito de cidadania, que se traduz em um desapego generalizado aos sistemas democráticos. No cidadão — o Homo democraticus, nome da polêmica estátua de Donatas Motskus, em Riga (Letônia) — diluiu-se a qualidade essencial de democrata. A cidadania democrática vem se reduzindo gradualmente a um status passivo e inercial. É preocupante que, em relação à democracia, prevaleçam uma espécie de individualismo e indolência que desarticulam os cidadãos, desconectando-os uns dos outros e impedindo tecer sólidas redes de resistência em face da avalanche autoritária que está na ordem do dia.

A segunda ideia é de caráter cultural. Um Homo democraticus agonizante se projeta tal como ele é sobre a cultura da nação a que pertence.

De fato, ele molda essa cultura. E a constitui. É impossível que a falta de compromisso dos cidadãos com a democracia não se traduza em condições culturais adversas para a sobrevivência da própria democracia. A debilitação da democracia em nível antropológico converte-se facilmente em falência sistêmica e, portanto, em caldo de cultura de regimes autoritários marcados pela anomia e pela tolerância à injustiça (Pérez Perdomo, 2019). E aí ganha especial importância a despolitização que invade as artes, os meios de comunicação, as redes sociais e até os sistemas educacionais, entendida como a perda da consciência pessoal e coletiva da radical relevância do político e da política para a boa vida humana (Mounk, 2018).


A debilitação da democracia em nível antropológico converte-se facilmente em falência sistêmica e, portanto, em caldo de cultura de regimes autoritários.

A terceira ideia guarda relação com a erosão do Estado de direito e a autocratização das magistraturas. Uma vez projetado sobre a cultura o desapego à democracia que caracteriza o Homo democraticus, as instituições se enfraquecem, incluindo o sistema judiciário. A falta de valoração positiva da democracia impregna rapidamente as instituições (Gessen, 2021). Neste sentido, as instituições também começam a perder qualidade democrática e a funcionar mais pelas opiniões generalizadas da população do que pelas prescrições constitucionais e legais. São permeadas pela sedução do autoritarismo, que responde em sua raiz tanto ao Homo democraticus apequenado como ao colapso da cultura democrática. Consequentemente, as instituições do Estado constitucional também perdem capacidade para sustentar a democracia e resistir aos delírios autoritários.

A quarta ideia remete ao retrocesso universal da democracia apontado anteriormente. O declínio da democracia é global. A crise do Homo democraticus e da cultura democrática é um vírus que parece se espalhar sem encontrar vacinas capazes de neutralizá-lo. Atualmente, as próprias ideias da democracia liberal e do governo representativo estão em questão. Vladimir Putin e sua tentativa de invasão da Ucrânia demonstraram que a somatória informe — mal digerida — das desconsolidações democráticas singulares das nações livres com a existência de enclaves autoritários preestabelecidos pode degenerar com velocidade insuspeitada em fraturas da ordem mundial;

uma ordem que, depois da Segunda Guerra Mundial e da queda da urss, deveria ser indubitavelmente de democracia constitucional e de pleno respeito dos direitos humanos. Sem falar no problema mais grave que hoje ameaça a democracia liberal: o crime organizado como elemento de corrupção moral que estabelece eficazes redes de solidariedade autoritária entre as potências ditatoriais do mundo, enquanto as boas intenções das democracias do globo caminham a duras penas e os mecanismos do direito público internacional são insuficientes para proteger oportunamente a liberdade.

Penso que tudo isso é parte do panorama antropológico e cultural que acolhe o fantasma do autoritarismo mundo afora.

O fantasma do autoritarismo eleitoral

Nesta seção, devo examinar a natureza pseudoeleitoral do fantasma do autoritarismo ou, em outras palavras, em que consiste o fantasma do autoritarismo eleitoral.

Uma das características da democracia constitucional de nossos dias é que ela perdeu a capacidade de defender a si mesma de atores desleais. Refiro-me a atores desleais nos termos clássicos com que Juan Linz conceitualiza a expressão. São atores políticos que expressam abertamente suas convicções antissistema, antidemocráticas e inconstitucionais. Porém, sem nunca ultrapassar os limites da legalidade formale escudando-se cínica e maliciosamente na liberdade de expressão, na tolerância e no pluralismo político. Atores, em síntese, que empregam o instrumental jurídico e de direitos humanos da democracia para conspirar contra a democracia. Como exemplo desses atores, podemos citar Hugo Chávez, Andrés Manuel López Obrador e Nayib Bukele, quando candidatos à presidência. Nunca ocultaram suas intenções autoritárias, mas tampouco saíram formalmente da legalidade estabelecida para disputar o poder democraticamente.

Essa perda de capacidade de defesa perante os atores desleais à democracia merece algumas reflexões que nos ajudarão a definir melhor a natureza do autoritarismo eleitoral.

A primeira é que esses atores desleais encarnam o sentimento antissistema e antipolítico do Homo democraticus cansado da democracia. Refletem-no como um espelho fiel da realidade profunda das formações sociais. É por isso que os atores desleais à democracia são populares e carismáticos e contam com altíssimos níveis de aprovação (especialmente em períodos de campanha eleitoral). A segunda é que esses atores desleais usam o voto e a via eleitoral como seus principais mecanismos de luta. O desprestígio (e inviabilidade) da via armada para tomar o poder de assalto e os altos níveis de popularidade desses personagens fazem com que, para eles, o melhor negócio para satisfazer suas pretensões autoritárias seja a via eleitoral. Os autocratas do século xxi são radicalmente eleitoreiros e, de modo geral, sentem-se muito à vontade em eleições controladas por eles mesmos.


    Sobre Putin e sua influência no retrocesso universal da democracia, ver Gessen (2012).

Os autocratas do século xxi são radicalmente eleitoreiros e, de modo geral, sentem-se muito à vontade em eleições controladas por eles mesmos.

Mas cabe aqui uma observação. Para melhor entender os líderes autoritários de hoje, é preciso desdobrá-los em dois: o autocrata candidato e o autocrata chefe de Estado ou de governo. O primeiro utiliza o marco da democracia livre e verdadeiramente competitiva para ganhar eleições. Mas é característico do autoritarismo eleitoral que, ao conquistar o poder e assumir o comando do Estado ou do governo, o autocrata tente imediatamente solapar as regras da democracia. Ele corrompe o sistema eleitoral, diminuindo ou anulando sua competitividade.

A potencial corrupção do sistema eleitoral vem acompanhada da tentativa de destruir a institucionalidade democrática e o Estado de direito. Essa é a terceira reflexão sobre o “êxito” dos atores desleais ao sistema de liberdades e sobre a vulnerabilidade da democracia. O fantasma do autoritarismo eleitoral requer a simultânea perversão dos órgãos eleitorais e das magistraturas (Matheus, 2022). Porque um sistema eleitoral fraudulento requer juízes que o manipulem conforme a vontade do regime autocrático imperante. Não por acaso, na América Latina, os exemplos anteriormente citados de Hugo Chávez, Andrés Manuel López Obrador e Nayib Bukele conseguiram ou estão tentando cooptar os órgãos eleitorais e as cortes supremas. Nesse sentido, o fantasma do autoritarismo implica o desmantelamento gradual do Estado de direito (Matheus, 2019b) e a corrupção dos juízes.

A quarta reflexão é talvez a que mais desafia os intelectos e mais custa assimilar de modo racional. O fantasma do autoritarismo eleitoral é prova irrefutável de que a autocracia encontra suas raízes profundas nas entranhas das sociedades. Os líderes autoritários de hoje podem ganhar eleições e desmantelar gradualmente as instituições do Estado de direito porque contam com a tolerância ou o consentimento do Homo democraticus prevalecente. Ou, no melhor dos casos, porque, para esse Homo democraticus que prevalece, a morte da democracia constitucional não é motivo de preocupação. Ele quer viver (ou sobreviver) no privado, à margem das controvérsias políticas e partidárias que lhe parecem banais. Verifica-se uma fuga do público, que transforma a arena política e a luta eleitoral em um campo aberto no qual campeiam impunemente os atores desleais à democracia.

Os líderes autoritários de hoje podem ganhar eleições e podem desmantelar gradualmente as instituições do Estado de direito porque contam com a tolerância ou o consentimento do Homo democraticus prevalecente.

A quinta e última reflexão é sobre um fenômeno que podemos chamar de presunção democrática. Quando surge o fantasma do autoritarismo eleitoral (e da autocracia em geral), costuma ocorrer uma subestimação, por parte das elites políticas, intelectuais, empresariais, sindicais, midiáticas etc., quanto ao potencial destruidor dos modos autocráticos incipientes, a par de uma superestimação, pelos mesmos atores, da capacidade de resistência das instituições democráticas estabelecidas. Generalizam-se frases — tomando como exemplo o caso venezuelano, para mim o mais familiar — como: “Hugo Chávez não é o autocrata que aparenta ser”; ou “ele não vai conseguir cumprir o projeto autoritário que pretendem implementar”; ou “Chávez tem grande liderança, mas a Venezuela não é Cuba, e neste país será impossível destruir a democracia”. Trata-se de certa incredulidade ou um estado de negação da possível perda da liberdade e da justiça. Em consequência disso, por vezes se sacam clichês sobre o radicalismo ou a moderação para julgar o autoritarismo eleitoral em sua lida histórica: a luta pelo poder, a conquista do poder e a permanência a qualquer preço no poder; e também provoca, por medo, o aprofundamento das estruturas de censura e autocensura dos meios de comunicação que impedem denunciar com realismo e apego à verdade a erosão da democracia, a violação dos direitos humanos, a falta de autonomia das instituições e a deterioração dos sistemas eleitorais.

Conclusões

Analisado o ressurgimento global do autoritarismo e a crise antropológica que o possibilita e tendo refletido sobre algumas características do autoritarismo eleitoral, passo agora a umas breves conclusões, associando cada uma a sugestões práticas para agir no resgate da democracia:

1. O retrocesso universal da democracia é um fenômeno cultural com raízes antropológicas. Portanto, a luta atual pela democracia é necessariamente uma luta pela cultura, de pedagogia cidadã, que deve fazer com que os cidadãos revalorizem as ordens democráticas como as opções realistas para viver em liberdade e com justiça social.

2. Convém atentar à face antropológica da crise da democracia (Bautista de Alemán, 2021a). O fantasma do autoritarismo que ronda o mundo pretende criar, na prática, um homem novo: o Homo democraticus com alma autoritária ou interiormente submetido à injustiça. Nós, lutadores democráticos, pelo contrário, temos a obrigação de liberar a consciência desse Homo democraticus para que sua identidade seja a de um genuíno democrata. Isto é, para que ele deseje viver em democracia verdadeira e seja capaz de se comprometer, enquanto cidadão ativo, com o exercício dos deveres associados à cidadania. Trata-se de propiciar o retorno à política, a repolitização autêntica das sociedades e alentar os cidadãos a assumirem sua condição de Homo politicus que deseja ser Homo democraticus. A resistência mais segura e prolongada no tempo contra o fantasma do autoritarismo são homens e mulheres que assumam a cidadania — segundo a clássica teoria de Jellinek — como um status ativo.

3. É importante desmontar a presunção democrática e promover junto aos povos a pedagogia da humildade coletiva. O declínio global da democracia demonstra que nenhuma nação é predestinada por forças históricas nem pelo acaso a viver permanentemente em democracia. Muito pelo contrário. A lição prática de Jefferson continua mais vigente que nunca: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Uma vigilância que começa na alma do Homo democraticus e continua nas elites, nas instituições e nas relações internacionais.

4. Sobre o uso das eleições para enfraquecer ou derrotar os autoritarismos eleitorais, quero assinalar o seguinte. Tal como demonstrou Andreas Schedler (2013, pp. 141 ss.), o poder das eleições em contextos autoritários reside na dupla circunstância de mobilizar a cidadania para verdadeiras aspirações democráticas e em colocar os regimes autocráticos em conjunturas (Matheus, 2019c) de erros de cálculo que os façam perder o poder (Haggard & Kaufman, 2016). Algo semelhante àquilo que o pan conseguiu na busca da transição democrática no México. Em todo caso, a postura-chave no uso das eleições reside em ter plena consciência da natureza do fantasma autoritário que se enfrenta (Matheus, 2019a), fazer com que a cidadania participe dessa consciência, expor a verdade das situações, independentemente do que expressarem os aparatos oficiais de propaganda e, o mais importante, conseguir que a luta eleitoral não seja apenas dos partidos e das elites, mas de toda a sociedade.

5. Finalmente, o realismo sobre os tempos da mudança política e sobre os itinerários de democratização. O caminho para a democracia pode ser longo e árduo. A perseverança na luta democrática é um aspecto essencial do exercício cívico, coletivo, da virtude da fortaleza. Os povos devem persistir em sua luta enquanto o fantasma do autoritarismo e as condições que o tornam possível persistirem. Mas a verdadeira maturidade do Homo democraticus reside no entendimento de que a democracia não deve ser apenas conquistada e inaugurada, mas fortalecida sob o signo — já mencionado — da permanente vigilância. Viver em democracia é um privilégio ganho pelo esforço e heroísmo compartilhado dos cidadãos. E assim, mais uma vez, ganham vida as palavras que presidem o edifício da Prefeitura de Hamburgo: Libertatem quam peperere maiores digne studeat servare posteritas.

Referências

Bautista de Alemán, P. (2021a). El fin de las democracias pactadas: Venezuela, España y Chile. Caracas: Dahbar.

Bautista de Alemán, P. (2021b, abril). Reflexiones sobre el daño antropológico en Venezuela. Democratización, 3(12). Instituto forma, Caracas.

Bautista de Alemán, P. (2021c, dezembro). Lecciones preliminares del 21 de noviembre. Democratización, 3(16). Instituto forma, Caracas.

Fukuyama, F. (1992). The End of the History and the Last Man. Nova York: Free Press.

Gessen, M. (2012). El hombre sin rostro. El sorprendente ascenso de Vladimir Putin al poder. Madri: Debate.

Gessen, M. (2021). Surviving Autocracy. Londres: Granta.

Ginsburg, T., & Huq, A. (2018). How to Save a Constitutional Democracy. Chicago: Chicago University Press.

Haggard, S., & Kaufman, R. R. (2016). Dictators and democrats: masses, elites, and regime change. Princeton: Princeton University Press.

Matheus, J. M. (2019a, setembro). Configuración ideológica de la revolución bolivariana. Democratización, 1(1). Instituto forma, Caracas.

Matheus, J. M. (2019b, outubro). El carácter gradual del desmantelamiento del Estado de derecho en Venezuela. Democratización, 1(2). Instituto forma, Caracas.

Matheus, J. M. (2019c, dezembro). La resiliencia de la revolución chavista. Democratización, 1(4). Instituto forma, Caracas.

Matheus, J. M. (2022, junho). Corruptio optimi pessima. Democratización, 4(19). Instituto forma, Caracas.

Mounk, Y. (2018). The people Vs democracy: Why our freedom is in danger and how to save it. Cambridge: Harvard University Press.

Pérez Perdomo, R. (2019, outubro). Anomia, Estado y derecho en Venezuela. Democratización, 1(2). Instituto forma, Caracas.

Schedler, A. (2013). The politics of Uncertainty: Sustaining and Subverting Electoral Authoritarianism. Oxford Studies in Democratization. Londres: Oxford University Press.

Vöegelin, E. (2006). La nueva ciencia de la política. Buenos Aires: Katz.


    Que a posteridade trate de sustentar com dignidade a liberdade gerada pelos antepassados.

Paola Bautista de Alemán

Paola Bautista de Alemán

Doctora en Ciencia Política por la Universidad de Rostock (Alemania). Presidenta del Instituto FORMA y la Fundación Juan Germán Roscio de Venezuela. Autora del libro «A callar que llegó la revolución». Directora de la revista «Democratización».

newsletter_logo

Únete a nuestro newsletter